05/03/2013

Bancos e ação civil pública: a visão do STF - 1ª parte

Quanto mais metodologicamente organizado é o estudo do processo constitucional mais perceptiva é a sua regulação por normas jurisprudenciais, com especial destaque para as criadas pelo STF. Identificar e analisar tais normas ajuda o advogado a deliberar estratégias postulatórias na busca da melhor solução do caso que lhe é confiado. Auxilia o uso consciente da sua capacidade postulatória constitucional.

Essa é a motivação para a análise aqui proposta das decisões do STF sobre as ações civis públicas (ACP) movidas contra bancos. O estudo nada mais faz do que testar o método de análise empírica de grupo de decisões, que pode propiciar ao advogado uma ferramenta de controle racional das decisões num setor regulatório específico.


O resultado da pesquisa é o repertório de normas jurisprudenciais identificadas. Isso em si não é relevante, se não é dada a importância a como o alcançamos e o que fazemos com ele. Observá-lo do ponto de vista da argumentação constitucional como técnica de deliberação postulatória é o que releva. Quais as estruturas e formas argumentativas usadas para se chegar às normas? São normas consolidadas ou passíveis de alteração?

É possível identificar em sua construção elementos teóricos aplicados ou testados? É recomendável insistir em peças processuais que contrariem as normas identificadas? O STF aplicou fundamentos da teoria constitucional material e processual? Como lidou com os problemas concretos do setor bancário? Perguntas voltadas ao processo decisório judicial in action, com vista a identificar a sua estrutura argumentativa, e parte disso para reconstruir, indutivamente, a práxis do processo constitucional.

Esse ensaio não pretende respondê-las, mas prepará-las para tanto, ao apresentar o rol das normas identificadas, com a descrição quantitativa e minimamente qualitativa dos dados obtidos.

Dados da pesquisa

O universo da pesquisa são os acórdãos do STF que fundamentam a (in)admissão do recurso extraordinário (RE) em ACP ajuizada contra bancos. Essa é a população[1]. Todas as decisões analisadas trazem razões jurídicas capazes de ativar ou obstar a jurisdição constitucional estrita[2].

Não analisamos todas as decisões, mas uma amostra[3]. A seleção da amostra atende a certas regras para que os casos escolhidos representem o universo estudado, por conter as suas características básicas. Buscamos tais regras na estatística[4] e as aplicamos para delimitar as decisões a serem analisadas.

Tomamos como base a “pesquisa de jurisprudência”[5] do STF. Foram lançadas as palavras-chaves “banco” e “ação civil pública”. Primeiro, assinalamos a pesquisa de acórdãos, para a qual sobrevieram 27 registros, e depois de decisões monocráticas, com 216 registros. A análise se restringe aos acórdãos. Privilegiamos as decisões colegiadas, pois deixam mais a vista o consenso e o dissenso. Dentre os 27 acórdãos, afastamos decisões que não resolviam a (in)admissibilidade do RE e as que não diziam respeito à ACP contra bancos. Ficaram 14 acórdãos. Como duas decisões se referem ao mesmo RE, proferidas em recursos distintos, então ficamos com a mais remota.

A amostra[6] tem então 13 acórdãos elaborados entre 19/10/2000 e 10/10/2012.


Ao observar o objeto debatido, verificamos traços comuns das lides. Foi então que classificamos os problemas concretos segundo as espécies de serviços bancários (FORTUNA, 2008, p. 144). Apenas em alguns casos a problemática não trata de tais serviços, lida com a relação de trabalho, envolvendo, por exemplo, problemas de segurança laboral. As lides discutidas são atinentes ao direito administrativo, trabalhista e consumidor, deduzidas com pretensão de violação direta da Constituição. Em nenhuma delas, é interessante dizer, a controvérsia diz respeito à interpretação ou aplicação constitucionalmente adequada, especificamente, de normas provenientes do sistema regulatório bancário, conforme mais adiante discutiremos.       
  

Colhemos alguns dados relevantes. Subdividimos as decisões em 3 grupos: (a) as proferidas em julgamento do RE; (b) em recursos tendentes a acionar o STF por RE; (c) e os tendentes a alterar a decisão em RE´s. No primeiro grupo, a questão decidida, porque foi decidida, pressupõe tratar-se de problemática passível de desencadear a jurisdição constitucional. O segundo grupo identifica decisões em recursos intentados após a inadmissibilidade dos RE´s, como, por exemplo, o agravo regimental; nesses recursos, os postulantes trazem razões para demover a admissibilidade. O terceiro grupo indica decisões tomadas em recurso interposto após o conhecimento do RE, portanto tendente a modificar o seu resultado; mesmo aqui, se o RE foi conhecido, qualquer que seja o seu resultado, implica que a controvérsia ativou a jurisdição constitucional; logo, justifica ser analisada.

A partir dessa subdivisão, observamos que o STF admitiu o RE em 6 casos e em 7 não.


 
Todas as decisões, com exceção de dois casos[7] foram unânimes. Apenas em duas oportunidades[8] foram julgadas a favor dos interesses bancários, o que representa 15,38%. Nos demais casos, o benefício recursal foi dos legitimados ativos (84,62%).

Discussão dos resultados

Os dados colhidos revelam que, na visão do STF, com base na amostra analisada, o controle difuso de constitucionalidade nas ACP´s movidas contra bancos tem se prestado a ativar, com sucesso em uns casos e em outros não, a competência do STF para resolver questões constitucionais essencialmente processuais e não substanciais.

Esse dado é relevante, pois indica que, ao menos na seleção jurisprudencial do STF, inexistem decisões de mérito das ACP´s movidas contra as instituições bancárias. De duas uma: ou a seleção não atendeu ao grau de relevância como critério de escolha dos julgados, ou o STF não decidiu controvérsias meritórias em ACP contra bancos. Acreditamos mais nessa última hipótese.    

Em percentual elevado, as questões foram decididas a favor dos interesses dos legitimados ativos (84,62%), para resolverem em seu benefício entraves processuais que obstam o processamento da ACP até a pronúncia de mérito.

Esse dado revela ainda existir uma zona de controvérsia ou resistência acerca dos limites de atuação dos legitimados ativos, especialmente do Ministério Público, na discussão de conflitos sociais desafiáveis por ACP. De um lado, há a resistência dos bancos em admitir a atuação dos legitimados ativos na defesa de direitos e interesses coletivos em dados conflitos, ou interesses individuais homogêneos que afetem diretamente os serviços bancários. De outro lado, os legitimados ativos marcam presença, testam a todo instante os limites de sua atuação na proteção do coletivo afetado por serviços bancários ou pela relação viciada de trabalho. No centro, o STF tende a prestigiar o fortalecimento da ACP como garantia ou remédio constitucional de defesa coletiva de direitos fundamentais passíveis de violação nas relações jurídicas atinentes ao setor bancário, em especial à proteção do consumidor, ao patrimônio público e às relações de segurança, ambiente e saúde laborais. Essa percepção ganhou força especialmente depois de o STF entender que os bancos estão sujeitos à incidência do código de defesa do consumidor, logo de todo o arsenal normativo da sua proteção coletiva[9].

Esse cenário chama a atenção. Investigada a sua causa, conclui-se que está estritamente relacionada à questão constitucional objeto do RE, admitido ou não. Em todos os acórdãos, a controvérsia girou em torno da legitimidade ativa de quem promovia a ACP: em 9 casos debateu-se a legitimidade do Ministério Público, em 3 de Associação e em 2 de Sindicato; outros assuntos foram debatidos, cada qual em 1 caso, sempre em conjunto com o problema da legitimidade ativa: o problema da lei pré-constitucional em controle difuso; a violação dos postulados da defesa; a competência da Justiça do Trabalho em assunto de segurança, ambiente e condições de trabalho; o desrespeito à reserva de plenário (art. 97 CF); e o direito intertemporal em relação ao CDC. Em apenas dois casos[10], o debate sobre a legitimidade ativa foi favorável aos interesses bancários, nos demais o STF reafirmou o poder de atuação dos legitimados ativos de manusearem a ACP para a defesa coletiva de direitos e interesses afetados - do ponto de vista autoral - por serviços bancários ou por condições inadequadas de trabalho de seus empregados. 

Ao analisar todos os casos, procuramos “‘reconstruir’ o direito do caso” (LORENZETTI, 2009) analisado a partir da observação das razões de decisão. Isso nos permitiu identificar os sentidos normativos com base nos quais o STF concluiu por admitir ou não o RE; os sintetizamos na expressão normas jurisprudenciais processuais constitucionais concretas [11]. São elas:

  • MP é parte legítima para ajuizar ACP, na defesa do patrimônio público, com o fim de obter a nulidade de ato do poder público que autoriza o Banco a conceder empréstimo atrelado a benefício fiscal[12];              
  • ACP é meio adequado para declarar, na via incidental, a incompatibilidade do direito pré-constitucional com a Constituição vigente quando a declaração configurar tão-somente a causa de pedir da ação[13];
  • MP é parte legítima para ajuizar ACP para a defesa de direitos difusos e coletivos no âmbito trabalhista[14];
  • MP é parte legítima para ajuizar ACP para a defesa de direitos individuais homogêneos, quando demonstrada a relevante natureza social[15];
  • Para simples reexame dos autos, com a finalidade de verificar as circunstâncias de configuração dos interesses coletivos dos sindicalizados como justificação da legitimidade ativa do sindicato para ajuizar ACP, não cabe RE[16];
  • Controvérsia pertinente à legitimidade de associação para propor ACP é matéria infraconstitucional por ser circunscrita à interpretação da Lei 7.347/85[17], logo a ofensa a preceito constitucional adviria de forma indireta e reflexa;                      
  • Decisão judicial em ACP que aplica o CDC antes da sua vigência pode ser desafiada por RE[18];     
  • O inciso III do artigo 8º da CF/88 estabelece a legitimidade dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais homogêneos dos integrantes de categoria que representam desde a fase de conhecimento até a de liquidação e execução de créditos reconhecidos aos trabalhadores[19].  
Como já dito, o mais importante não é o rol em si, mas a forma e estrutura argumentativas das decisões[20] em que foram construídas essas normas, como o STF operou as referências textuais, como exercitou o raciocínio judicial aplicado para formular as normas, e se os argumentos usados são corretos do ponto de vista da teoria da argumentação jurídica. Pela brevidade do estudo, essa análise não será aqui realizada.

Conclusão

A identificação das 8 normas jurisprudenciais processuais constitucionais concretas é um instrumento de técnica processual importante ao deliberar as estratégias postulatórias constitucionais em vista da solução mais satisfatória de casos concretos que têm em comum a pertinência a um dado setor econômico regulado.

Tais normas podem nortear os próximos RE´s em outras ACP´s. É certo que, nesse caso, não são dotadas de efeito vinculante, mas, seguramente, de efeito argumentativo persuasivo. O RE que estiver em linha com elas certamente será admitido e provido; do contrário, há grande possibilidade de não ser conhecido ou negado seguimento monocraticamente (artigo 557 do CPC). Para que isso não ocorra, ou seja, para a derrotabilidade dessas normas, é preciso analisar as razões justificativas que as construíram e trabalhar novos argumentos metodologicamente articulados para alterar a linha jurisprudencial ou dela distinguir-se.

Quem entende que o ato de decisão é totalmente randômico, acredita que inexiste padrão argumentativo. Não acreditamos nisso. A racionalidade decisória pode formar padrões segundo a racionalidade aplicada pelo julgador. A constância da forma e da estrutura dos argumentos usados poderia confirmar os padrões ao longo do tempo. Logo, abstraí-los é oferecer ao advogado um controle racional da argumentação do julgador com consistentes resultados de previsibilidade decisória. Esse estudo chama a atenção para isso.

[1] Na ciência estatística, população “é o conjunto de elementos portadores de pelo menos uma característica comum de interesse para ser estudada estatisticamente” (COSTA, 2011, p. 2).
[2] Para efeito desse estudo, jurisdição constitucional estrita está ligada a ideia de complexo de ritos jurisdicionais tendentes a uma decisão judicial em controle de constitucionalidade.  
[3] Amostragem “é o estudo de uma população com base em uma parte representativa da mesma, isto é, com base numa amostra” (COSTAS, 2011, p. 3).
[4] “A Estatística é a ciência que estuda um determinado tipo de fenômeno: os fenômenos coletivos ou de massa” (COSTA, 2011, p. 1).
[5] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 01/02/2013.
[6] Considerando que o campo de “pesquisa de jurisprudência” é um banco de dados de decisões selecionadas, acessá-lo não garante o contato com toda a população. Por isso, a amostragem praticada não é probabilística. Porém, não é a pretensão da pesquisa estabelecer probabilidades, mas apenas delimitar, metodologicamente, um universo de casos que podem ser individualmente analisados (COSTA, 2011, p. 14). Como a “pesquisa de jurisprudência” do STF leva em conta o grau de relevância das decisões escolhidas, acredita-se que a amostra bem representa a população analisada.  
[7] EDRE 395.384; RE 210.029.
[8] AgRAI 779.438; EDRE 395.384.
[9] ADIn 2.591.
[10] EDRE 395.384 e AgRAI 779.438.
[11] Essa expressão tem inspiração na “norma de decisão” de Friedrich Müller (2008; 2009).
[12] AgRRE´s 547.532 e 586.705.
[13] AgRED RE 633.195.
[14] AgRAI´s 672.453 e 416.463; RE 210.029; AgRRE 394.180.
[15] AgRED RE 633.195; AgRAI´s 737.104 e 566.253; AgRRE´s 547.532 e 586.705, RE 441.318.
[16] AgRAI 779.438.
[17] AgRAI 566.253; AgRRE 366.064.
[18] EDRE 395.384.
[19] RE 210.029.
[20] “Um argumento se compõe das proposições elaboradas para sustentar uma proposição e pertencem a uma forma de argumento”; “A expressão ‘forma de argumento’ define a estrutura de uma proposição feita pelo falante (C) juntamente com as proposições (D e W) pressupostas para a sustentação desta proposição”; “A expressão ‘estrutura do argumento’ se refere às relações lógicas entre vários argumentos de um determinado falante” (ALEXY, 2005, p. 110).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários